Administração Pública Guineense: Constrangimentos vs desafios de futuro (*)
Por Luís Barbosa Vicente
Gostaria de
abordar a questão da administração pública guineense tecendo algumas
considerações e testemunhos de um dos dirigentes deste setor, que acompanhou de
forma direta todo o processo da instalação do Estado, bem como do serviço
público, logo a seguir à proclamação unilateral da independência da
Guiné-Bissau em 1973.
E, de forma
indireta, já no ano de 2008, última tentativa de proceder a reforma da
administração pública através do PARAP - Programa de Apoio à Reforma da
Administração pública. Recorde-se que em 2008 deu-se o primeiro passo para a capacitação
institucional do país através do programa PARAP – Programa de Apoio à Reforma
da Administração Pública. O diagnóstico da situação apresentava o cenário que
transcrevo: (…) Administração pública com cerca de 12 mil pessoas, um grande
desfasamento face às receitas previstas no orçamento de Estado; mais de 2600
funcionários eram excendentários e 1600 analfabetos funcionais; crescimento da
despesa pública a um ritmo assustador, essencialmente devido ao peso da massa
salarial (133,5%) que ultrapassa as receitas fiscais, situação devidamente
insustentável; uma administração pública opaca, de difícil acesso, distante,
centralizada, desestruturada, não qualificável, não credível, ineficaz, não
responsável e não prestava contas. E mais, o próprio Estado também não cumpria
com as suas obrigações o que permitia aos funcionários públicos invocassem esse
não cumprimento para justificarem a sua inércia (…).
Em setembro
de 2008, descrevia nas suas memórias os três pontos que apresentarei de seguida
(incluem anotações minhas):
1.
(…) Estávamos em Outubro de 1974:
Quanto à organização do Estado,
pelo menos no que se refere à “Documentação”, verifiquei que havia muito bom
ambiente, o que facilitava extraordinariamente as relações e a troca de pontos
de vista. Como já vinha tendo bastante expediente para movimentar, pedi a
colaboração de mais duas unidades, o que sucedeu rapidamente, através do
destacamento de dois funcionários do Subcomissariado de Estado da Administração
Interna, possuidores já de bastante experiência e cuja colaboração foi muito
boa.
Havia necessidade de documentar
muitas decisões, pois não era possível, sendo até muito inconveniente, manter
apenas na oralidade todas as providências que estavam a ser tomadas. Um dos
exemplos dessa situação era o próprio Governo: nada estava escrito sobre a sua
estrutura e muito menos quanto aos titulares dos seus diferentes órgãos.
Sabia-se apenas quem estava em determinado cargo, como possivelmente teria sido
decidido em 24 de Setembro do ano anterior, aquando da proclamação do Estado.
Mas no funcionamento dum Estado isso não basta, pois deve haver suporte que
permita, a quem de direito, a informação necessária. (…)
Fim da
citação
De realçar
que, à data de hoje, maio de 2016, ainda mantém-se esta situação. Existem, sem sombra
de dúvida, os Órgãos de Soberania mas não estão institucionalizados os serviços
de acordo com as normas e procedimentos da administração pública, esta é a
minha constatação.
A maior
parte dos serviços funcionam por autorrecriação dos seus dirigentes, funcionários
e técnicos, sem quaisquer normas de procedimentos administrativos e de controlo
previamente definidos, daí existirem falhas de comunicação entre as administrações
do mesmo serviço público e serviços diferentes, incluindo a relação entre o cidadão,
o Estado e Administração Pública.
2. Continua (…) Hoje, em 2008, reconhece-se a
falta que fazem relatos escritos de importantes factos ocorridos há dezenas de
anos, por falta de documentos e até mesmo por já não estarem vivos aqueles que
poderiam ser capazes de fazer um relato fiel dos factos que testemunharam
dezenas de anos atrás. Pedi a atenção para esses factos e, por isso, começaram
a ser feitas correções. Como exemplo: o amigo que estava no aeroporto, quando
cheguei, disse-me que era o Subcomissário de Estado (Secretário de Estado) dos
Correios e Telecomunicações. Mas apenas tinha sido mandado para lá, sem mais
formalidades de qualquer natureza. É verdade que, num meio pequeno como aquele
em que se estava, todos se conheciam. Mas o Estado não podia funcionar assim. Por
isso, tratei da documentação relativa à sua posse, que foi conferida pelo Chefe
do Estado e, quando a mesma decorria, entrou um Subcomissário de Estado que, em
tom de brincadeira, disse “burocracia em marcha”. Mas a burocracia era necessária.
(…)
Fim da citação
Na verdade,
um dos grandes problemas da administração pública guineense é a informalidade e
inexistência de procedimentos previamente definidos. Ora, tal como nos ensina Weber,
chamada de "Teoria de Burocracia na Administração”, cada época social
caracterizou-se por um determinado sistema político e por uma elite dentro de
determinada Cultura que, para manter essa Cultura e consequentemente o poder
dessa Cultura "Estatal", e a sua também consequente legitimidade,
desenvolveu um determinado aparelho ou estabelecimento administrativo para
servir de suporte à sua Autoridade e manter a sociedade nessa educação, administração
e cultura que é dinâmica de toda a Sociedade. Weber foi o primeiro teórico que,
numa análise voltada para a estrutura, acreditava que a burocracia era a
organização por excelência. A preocupação de Weber está na racionalidade,
entendida como a adequação dos meios aos fins, e uma organização é racional
quando é eficiente. Assim, a burocracia era a forma mais eficiente de uma
organização. Ao sistematizar o seu estudo da burocracia, Weber começa com a
análise dos processos de dominação ou Autoridade.
No caso
concreto da Guiné-Bissau, a Autoridade Poder foi quem sempre definiu a
estrutura da administração pública. As decisões estratégicas partem da
componente política, mas não têm uma resposta tática nem de gestão, muito menos
operacional, uma vez que os próprios gabinetes políticos e ministeriais têm uma
estrutura centralizada que absorve todo o aparelho produtivo e sua comunicação
com o exterior.
Ausência de estruturas orgânicas e modelos de gestão definidos com rigor e coerência, dos serviços, repartições, ministérios ou secretarias de estado, aliás, até a própria presidência da república e assembleia nacional popular, promove iniciativas centralizadoras, de igual modo a nomeação e criação de categorias não reguladas no quadro de competências e organização dos serviços da administração pública central.
Ausência de estruturas orgânicas e modelos de gestão definidos com rigor e coerência, dos serviços, repartições, ministérios ou secretarias de estado, aliás, até a própria presidência da república e assembleia nacional popular, promove iniciativas centralizadoras, de igual modo a nomeação e criação de categorias não reguladas no quadro de competências e organização dos serviços da administração pública central.
Exemplos
flagrantes disso acontecem cada vez que há um novo governo, uma nova
presidência da república e, mais, um novo ministro ou secretário de estado,
alterando à sua maneira a estrutura que mais lhe aprouver, senão vejamos:
cargos de assessor conselheiro; ministro diretor de gabinete, etc., são
estruturas que definem por si, as competências e funções de Assessor ou de
Conselheiro, Diretor de Gabinete e não Ministro Diretor de Gabinete, pese
embora as regalias em termos de remuneração mensal serem compatíveis.
3. Retomando (…). “Remuneração
mensal - Tabela geral”, - Com a independência nacional vários cargos tiveram
que ser criados, já que não existiam no aparelho administrativo da antiga
colónia.
Durante a Luta de Libertação eram
desconhecidos quadros de pessoal e serviços a prestar contra uma remuneração periódica.
Havia, isso sim, apenas militância. Mas ao assumir o poder, o Partido
encontrou, nos vários pontos do território nacional, gente que trabalhava em
diversos organismos estatais e que recebia todos os meses, de acordo com a
categoria que lhe estava atribuída, uma compensação financeira pelo seu
serviço. É que, embora com uma certa indefinição, a Administração continuava a
funcionar com o pessoal que havia. Os seus salários, portanto, deviam ser pagos.
Pois foi aí que o próprio
Presidente da República, numa atitude que dava bem nota da camaradagem e
espírito de equipa que havia, também quis participar, tanto fazendo a
integração das novas funções que tinham surgido, como revendo o quadro das
remunerações que estavam fixadas para os diferentes cargos. E argumentou ainda,
com sucesso, a favor da extinção das duas categorias mais baixas que constavam
da tabela salarial, fazendo passar os seus titulares para a categoria
imediatamente superior.
Contudo, havia um ponto basilar
para o pagamento dos salários: era o do orçamento, com a previsão das receitas
e despesas do Estado. Havia, de facto, um orçamento previsional das despesas e
receitas, feito no ano anterior pelo governo colonial. Mas é evidente que não
contemplava quaisquer encargos como os que resultaram da transferência dos
poderes. A solução adotada foi a de tornar extensivo ao primeiro semestre de
1975 o orçamento preparado para 1974 e, nesse período, regularizar toda a
situação entretanto surgida.
«Dias feriados» - Outra
questão dizia respeito aos dias feriados, que estavam conformes com os da
antiga metrópole. Após uma chamada de atenção do Comissário Principal para
isso, preparei o diploma que devia proceder à necessária alteração.
Apresentado, o respetivo rascunho mereceu do Comissário Principal a observação
de que estava incompleto, pois faltavam dois acontecimentos que, pelo respeito
à opção religiosa de grande parte da população do País, deviam figurar no
quadro dos feriados: o Ramadão e o Tabasky. Assim se fez.
«Boletim Oficial» - O
Comissário de Estado Sem Pasta, entretanto, era quem mais procurava trocar
impressões comigo, acompanhando e discutindo, com grande interesse, quase todos
os trabalhos que eu fazia. Foi assim que analisamos a questão dos documentos
relativos às decisões que eram tomadas pelos Órgãos do Estado e que deviam ter
um carácter oficial e a devida publicidade. O Boletim Oficial, porém, deixara
de ser publicado desde que tinha sido feita a total transferência dos poderes
para o Partido, em Setembro último. Abordada a questão, decidiu-se retomar a
publicação do jornal oficial, com designação e periodicidade idênticas às que
havia anteriormente: um “Boletim Oficial” por semana. Mas como se estava já
perto do fim do ano, o primeiro número só deveria ser publicado em Janeiro, o que
efetivamente sucedeu.
Como é natural, no primeiro número
deviam ser publicados os documentos mais importantes para o novo Estado: a
Declaração da Independência Nacional, proclamada pelo Partido, e a Constituição
da República da Guiné-Bissau, aprovada pela Assembleia Nacional Popular. A
constituição do nosso primeiro executivo foi também publicada, bem como a
designação dos mais altos responsáveis pelos diferentes departamentos dos
órgãos governamentais. A publicação do Boletim Oficial continuou a ser feita,
como durante o período colonial, pela Imprensa Nacional. Contudo, o Comissário
de Estado Sem Pasta e o Secretário-Geral do Governo fizeram de revisores dos
primeiros números.
«Hora legal e horário de trabalho» - A
Guiné-Bissau estava atrasada uma hora em relação aos países vizinhos, o que já
tinha provocado alguns contratempos, Por essa razão, e tendo em vista uma ainda
maior sintonia com os nossos vizinhos, foi decidido corrigir essa situação,
adiantando-se uma hora os nossos relógios. Foi escolhida a noite da passagem do
ano para isso – e assim se fez. Mas também se decidiu, na mesma altura, mudar o
horário de trabalho, passando a entrada dos trabalhadores do Estado, no
primeiro período, a fazer-se meia hora mais cedo (às sete horas e trinta minutos).
Por último, na área da Justiça,
fui-me identificando com muitos problemas, um dos quais era o atraso que se
verificava na decisão dos processos. Compreendi quanta dificuldade tinha todos
os intervenientes nos processos, desde magistrados aos mais modestos
trabalhadores da área, pela grande carência de meios com que lutavam
diariamente. As dificuldades não se punham só no funcionamento dos Tribunais,
pois eram idênticas nas outras áreas: os registos, o notariado e a
identificação civil lutavam com carências semelhantes, com todas as
consequências que daí resultavam. (…).
Fim da citação.
A propósito, um dos setores mais importantes da administração pública e, consequentemente, do Estado é a administração da justiça. Na verdade, volvidos cerca de 42 anos a seguir à
independência nacional proclamada em setembro de 1973, a justiça continua a
funcionar mal, não garante ao cidadão o seu papel de defensor da causa pública,
tal como refere a Ex-Ministra da Justiça, Carmelita Pires, no seu Discurso do
dia da Justiça (13/10/2015) cito:
(…) O aparelho judicial
não está minimamente preparado para cumprir as suas funções, nem assenta numa
jurisprudência consistente, padecendo de múltiplos vícios como a morosidade, a
inconclusividade, uma legislação desadequada ou obsoleta, um deficit de
procuração, redundando numa sensação generalizada de inoperância e de
impunidade (…)
Fim da citação.
Os princípios que norteiam a atividade administrativa no setor público, não se pode abordar a questão da administração pública e das reformas
necessárias sem garantir uma justiça forte, imparcial, responsável e eficiente. Por
conseguinte, a forma mais nobre de engrandecer uma nação é dignificar a sua
justiça, torná-la exemplar, responsável e séria na luta para afirmação dos
valores e princípios éticos que regem a sociedade.
Maio de
2016
Luís Barbosa
Vicente
(*) Consta do livro «Guiné‑Bissau, das contradições politicas aos desafios do futuro» de Luís Barbosa Vicente, Editado pela Chiado Editora (2016).
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