Sugestão para governar bem e para todos na Guiné-Bissau
Por Mário Beja Santos
De Luís Barbosa Vicente já aqui se fez detalhada referência a um livro
publicado em Outubro de 2016, na Chiado Editora, “Guiné-Bissau, das
contradições políticas aos desafios do futuro”. Em 2014, Luís Barbosa Vicente,
no rescaldo das eleições, publicou “Por uma reinvenção da governabilidade e do
equilíbrio do poder na Guiné-Bissau”, Edições Corubal, 2014.
É incontestável o empenhamento e a boa vontade deste guineense que é hoje
técnico superior de economia, gestão e finanças, além de ser professor
universitário e associativista sem desfalecimentos.
A sua obra de 2014 aponta para cinco direções: o problema ideológico e os
consensos políticos que são indispensáveis para governar bem a Guiné-Bissau; um
olhar sobre a forma de governar com profundo respeito pelo poder local e a
cidadania; encontrar uma nova lógica de medidas de política que permitam forjar um modelo económico ao serviço da sociedade guineense; repensar a cidadania,
acolher a juventude, tirar partido da sociedade digital; saber planear, formar
e qualificar para que o processo de desenvolvimento aponte para o longo prazo.
O autor procura refletir sobre as falhas da natureza do estado, antes e
depois do processo pluripartidário encetado em 1991. Temo que se continue a
passar à margem sobre uma questão essencial, mais atual do que nunca: quem
compõe, quais os graus de motivações e de preparação dos quadros políticos das
principais forças partidárias, com realce para o PAIGC e o PRS. É verdade o que
diz o autor, tem força universal: “O país carece de reformas profundas,
nutridas de valores inalienáveis, assumidos por homens e mulheres de bem, com
caráter, que respeitem o seu semelhante, a sociedade, o povo e o bem público,
em todas as esferas da vida nacional”. Como em tudo na vida, o exemplo vem da
liderança, do rigor e equidistância com que pratica o poder, sem ligações à esfera
económica ou a interesses manifestamente incompatíveis com as funções que se
exercem em órgãos de soberania.
Um primeiro-ministro só pode exercer o seu cargo fora da área de interesses
que tinha na sua vida privada, não se pode aproveitar do cargo para benefício
próprio, da família, do clã, do partido. Juízes, deputados, funcionários da
administração, todos os titulares de cargos públicos têm que mostrar estar
contra o clientelismo ou a corrupção. São questões que não se resolvem por
decreto, têm a ver com a essência dos programas partidários, dos princípios que
regem a vida dos políticos e o exemplo que dão. A corrupção não é erradicável
quando os funcionários estão sem receber ao longo dos meses, não tendo dinheiro
para os encargos familiares, esses funcionários corrompem-se. São os partidos
os espelhos da sociedade civil. Basta ler os relatórios da liga guineense dos
direitos humanos para aferir a má qualidade do exercício da atividade política,
com esta ainda está dominada pelo vírus do revanchismo e da atração tribal.
Percebe-se a intenção do autor invocando o pensamento de Cabral. Mas não chega,
as proposituras passam pelo reconhecimento do diagnóstico, pelas manifestações
do que se pretende alterar e da sua prática.
A unidade e luta por que explanava Cabral, o modo como procurava educar os
combatentes do PAIGC e moldá-los com um espírito revolucionário, é hoje pouco
aplicável, tem que se mostrar, ao nível das principais forças
político-partidárias, uma gestão que repudie a promiscuidade e o amiguismo, as
instituições do poder, os órgãos de soberania, têm que se expor com a maior
dignidade, respeito, responsabilidade e solidariedade. Essa mudança, a prazo,
acarreta novas práticas de cidadania, uma saudável liberdade de expressão, uma
boa imagem para o exterior e confiança para o investimento e ajuda
internacional.
Só com esta mudança é que o poder poderá governar com acatamento popular,
chegar aos lugares mais recônditos; só com uma administração preparada, com
quadros e auxiliares qualificados e imunes à corrupção, é que se pode avançar
para sustentáveis projetos de desenvolvimento.
O exemplo escolhido, pelo autor para o que devia ser uma auspiciosa boa
governação é o IX Governo Constitucional, liderado por Domingos Simões Pereira
e que integrava vários partidos da oposição. O conflito institucional
revelou-se insanável, o PAIGC mostrou não dispor de uma linha estratégica
suscetível de repor a ordem e o diálogo entre as instituições: baixou os
braços, permitiu as cenas carnavalescas dos deputados dissidentes, espatifou-se
uma excelente oportunidade de amplos consensos num governo que parecia ser a
imagem da respeitabilidade e da integridade. Não o foi.
E assim se passou para um impasse que ainda não está resolvido. Não há pois
condições de pôr de pé as reformas que Luís Barbosa Vicente sugere: para a
produção de arroz, para o reequilíbrio da balança comercial, para uma gestão
dinâmica no setor das pescas, para pôr de pé ou abandonar para todo o sempre a
construção do Porto de Buba, para promover mais turismo graças aos recursos
extraordinários que a Guiné oferece, e sem as garantias de um maciço apoio
estrangeiro é impossível falar-se em sociedade digital, uma melhor formação da
juventude, e não há matriz possível para o modelo de desenvolvimento. E
permanecerão as ameaças: na saúde, na exploração selvática de recursos, que
podem ser areias pesadas de Varela ou a exportação de troncos da madeira
devastando a floresta guineense sem projetos de regeneração, por exemplo.
Tudo isto para dizer que a esperança e o entusiasmo do autor embatem na
autocontemplação de uma classe política caprichosa, impreparada e onde as
formações partidárias se revelam incapazes de travar as ambições de muitos dos
seus membros que querem fazer riqueza e depois partir. É, pois, a questão
ideológica/política que está no coração do problema. O povo, um tanto
descrente, procura governar-se com as instituições disponíveis nas sociedades
rurais. Segundo muitos autores, há muitíssimos séculos que as coisas se passam
assim…
11 DE JANEIRO DE 2017
Mário Beja
Santos
Nota: Livro esgotado.
(*) Mário Beja Santos foi, até outubro de 2012, técnico superior da
Direção-Geral do Consumidor. É autor de mais de três dezenas de títulos
relacionados com as temáticas da política dos consumidores. Continua a
colaborar ativamente na imprensa diária e regional, bem como em alguns blogues.
Foi professor do ensino superior; cofundador da Plataforma Saúde em Diálogo e
da UGC – União Geral de Consumidores; colaborou durante mais de duas décadas em
emissões radiofónicas ligadas à defesa do consumidor e foi autor e apresentador
dos programas televisivos 10 Milhões de Consumidores e Come
e Cala; na sua
participação no consumerismo europeu, foi vice-presidente do Conselho
Consultivo de Consumidores da Comissão Europeia e diretor da Associação
Europeia de Consumidores. Alguns dos seus últimos livros são dedicados à Guiné: Diário
da Guiné (1968-1969) – Na Terra dos Soncó, Diário da Guiné (1969-1970) – O Tigre Vadio, Mulher
Grande e A
Viagem do Tangomau foram
publicados pelo Círculo de Leitores e pela Temas e Debates em 2008, 2011 e 2012.
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