A reforma do Estado e da administração pública (*)
Por Luís Barbosa Vicente
Tal como é importante rever os mecanismos de produtividade e eficiência da administração pública também é necessário definir a visão e perspetiva de enquadramento no modelo de Estado que mais se ajusta ao país tendo em conta a função bem estar-social das populações. Mas, vamos por partes.
As recentes
declarações do responsável pela pasta das Finanças não são indiferentes às
preocupações em matéria de governação e das políticas públicas face aos
desafios que o país tem pela frente, quando refere, cito: (…) “a existência de
funcionários públicos a mais e sem qualificações…o que impossibilita aumentos
dos salários nos próximos tempos...o caminho passa pelo saneamento do pessoal
sem qualificação para desta forma pensar-se nos aumentos salariais” (...), in
Lusa, 05/05/2015.
Na verdade,
os encargos com a administração pública no Orçamento de Estado e na despesa
pública são enormes e, consequentemente, o Estado consome mais de metade da
riqueza nacional produzida. Por um lado, há que emagrecer e redefinir as
funções de Estado que se pretende que deixem de ser executadas e financiadas
pelo Estado. Mas, a ideia não é a de que o Estado deixaria de ser responsável
por essas funções, mas a de que as conseguiria melhor e mais barata.
Contudo, é
importante não fazer a confusão entre funções do Estado e inoperância ou
ineficiência entre departamentos do Estado, mas isso não é função do Estado,
parece-se mais com criar "jobs for the boys" para justificar a
dimensão dos quadros de pessoal que são a verdadeira dimensão do poder dos
dirigentes da administração e governantes.
São várias
as funções que podem ser atribuídas ao Estado, desde a regulação do sistema
económico e da provisão de bens públicos até à redistribuição e intervenção
direta na economia. Das três funções básicas, enumeradas por Adam Smith -
defesa, administração da justiça e provisão de “bens públicos” - até aos
sistemas de direção central, várias têm sido as responsabilidades e funções
atribuídas ao Estado. Como e onde intervir continua ainda a ser foco de
discussão entre políticos e economistas. Porém, deixarei para as próximas
reflexões a dissertação sobre as fronteiras do poder, entre a economia e
intervenção política.
Quanto à
administração pública propriamente dita, esta é uma realidade vasta e complexa,
como tal, é entendida num duplo sentido. No sentido orgânico, é o sistema de
órgãos, serviços e agentes do Estado e de outras entidades públicas que visam a
satisfação regular e contínua das necessidades coletivas; no sentido
material, a administração pública é a própria atividade desenvolvida por
aqueles órgãos, serviços e agentes. Portanto, não se pode dissociar a
responsabilidade da atividade pública das funções do Estado uma vez que ela é o
instrumento para cumprimento dos objetivos do próprio Estado por via da regulamentação
e do ordenamento da atividade administrativa.
Falar da
reforma, é necessária sem dúvida mas deve começar, antes de mais, pelo Estado
tendo em conta a importância que deve ser dada o ordenamento jurídico sobre
administração pública, bem como as existências a nível constitucional e a nível
legal. Daí que, tal como defende Ana Carvalho, em Coletânea de Legislação
Administrativa (2007), é apontada a necessidade de regulamentação da
administração pública no que diz respeito à organização que a sustenta - normas
orgânicas; às relações que se estabelecem ou possam estabelecer com outras
entidades mas em especial com os administrados - normas relacionais; e à
atuação que se lhe impõe no cumprimento dessa sua missão, em sentido lato, de
satisfação das necessidades da comunidade em que se insere - normas
procedimentais.
Por um
lado, constata-se que na Constituição da República da Guiné-Bissau[1] faltam ainda diversas normas e
sobretudo princípios sobre funcionamento e atividade administrativa e uma
carência grave em matéria de garantias dos administrados. Aliás, vale a pena
aqui sublinhar a definição dada por o Kafft Kosta[2] (2015) «Esta manta de retalho
chamada Constituição da República da Guiné-Bissau. Retalhos de qualidades
diversas, diferentes espessuras, cores constantes, diversos tamanhos, idades
diferentes…Enfim, “tchapa-tchapa” jungidos e costurados em diferentes épocas
por diferentes alfaiates, com diferentes tipos de linha».
Por outro
lado, a Constituição guineense não consagra a Administração Indireta mas existe
uma Lei das Bases Gerais das Empresas de Capitais Públicos, o que permite
afirmar que, na realidade, existe uma administração pública tripartida, ou
seja, central ou direta, indireta e autónoma. Tal tripartição não resulta
portanto da Constituição mas confirma-se que verdadeiramente existem entidades
juridicamente distintas do Estado que desenvolvem uma atividade materialmente
estadual.
Uma outra
situação verificada, no sentido do elemento humano que integra a administração
pública, deparou-se com o Estatuto do Pessoal Dirigente da Função Pública, com
o Estatuto do Pessoal da Administração Pública e com o Estatuto Disciplinar dos
Serviços da Administração Pública, leis, todas elas, da década de 90, que
reduzem as carências nessa matéria em termos legislativos, muito embora falta
sobretudo a efetividade prática, ou seja a implementação e gestão. Significa
isto que existe uma carência grave sobre procedimento administrativo. Fim de
citação.
Concluindo,
não existe, neste momento, um diploma que regule de forma global, sistemática e
coerente o modo de proceder da administração pública perante os particulares, o
que se traduz na vigência de ambiguidades que prejudicam os particulares e põem
em causa um bom e regular funcionamento da Administração. É, ainda, de
assinalar a insuficiência do Direito por si só para pôr e manter em
funcionamento uma Administração Pública eficaz, eficiente, capaz de responder a
todas as questões que lhe são colocadas. Portanto, melhorar o funcionamento da
administração pública passa também por uma abordagem prática, boa legislação e
muito boa vontade política.
Em segundo
lugar, é notório que a administração pública guineense padece de enfermidade
grave que já vem de há muitos e longos anos, não de agora, tal como descreve o
então responsável da pasta da Função Pública, Trabalho e Modernização do Estado
em 2011, cito:
(…) “O maior handicap da nossa
administração pública é que não se apura responsabilidades, não se faz
avaliação para saber quem trabalha e quem não trabalha, as promoções são feitas
de forma discriminatória ao prazer das amizades, do clientelismo, de favores
políticos…isso tem que acabar na nossa administração pública…temos que
selecionar, temos que abrir espaço só para os mais competentes, mais capazes de
dar a sua contribuição nesta fase do nosso desenvolvimento” (…), in Gazeta de
Notícias (02/03/2011).
Se bem
recordam, com a entrada da Guiné-Bissau na UEMOA, em 1997, foram definidas
regras de reforma da administração pública, mas que não chegaram a ser
efetivamente implementadas em virtude do conflito militar de 1998. Mais tarde,
em 2002 e 2005 respetivamente, foram produzidos os primeiros programas de
reforma da administração pública e o plano estratégico da reforma da
administração pública, mas nunca chegaram a ser implementados, nem
materializados.
Em 2008
deu-se o primeiro passo para a capacitação institucional do país através do
programa PARAP – Projeto de Apoio à Reforma da Administração Pública - cujo
diagnóstico da situação apresentava o cenário que transcrevo:
(…) Administração pública com cerca
de 12 mil pessoas, um grande desfasamento face às receitas previstas no
orçamento de Estado; mais de 2600 funcionários eram excendentários e 1600
analfabetos funcionais; crescimento da despesa pública a um ritmo assustador,
essencialmente devido ao peso da massa salarial (133,5%) que ultrapassa as
receitas fiscais, situação devidamente insustentável; uma administração pública
opaca, de difícil acesso, distante, centralizada, desestruturada, não
qualificável, não credível, ineficaz, não responsável e não prestava contas. E
mais, o próprio Estado também não cumpria com as suas obrigações o que permitia
aos funcionários públicos invocassem esse não cumprimento para justificarem a
sua inercia” (…).
Bem, como é
do conhecimento público, o PARAP que decorreu entre os anos 2008 e 2011 era um
importante projeto de reforma da administração pública que beneficiou de cerca
de 6,5 milhões de euros por parte da União Europeia para a reforma da
administração pública da Guiné-Bissau. No entanto, de acordo com o relatório
publicado no ano seguinte, o então Ministro da tutela referia, cito:
(…) “O projeto foi mal desenhado e
mal concebido e os resultados estão aquém das expectativas” (…), in Gazeta de
Notícias (31/10/2012).
Em termos
práticos, desenvolveu-se um conjunto de procedimentos e gerou-se uma panóplia
de propostas que não deram o corpo ao projeto na sua plenitude, acabando por
ser abandonado tal como se pode ler ainda na entrevista supracitada (…)
“durante todo esse tempo houve vários projetos de diploma de modernização e
inovação da administração pública elaborados pela consultoria, mas nenhum
desses diplomas, infelizmente, foi aprovado durante a vigência do projeto” (…).
Cometidos ou falta de zelo, mas raramente alguém é chamado à
responsabilidade. Por isso a culpa morre solteira e todos pagam por
isso.
Ora bem, os
pressupostos de qualquer reforma é e necessariamente a vontade política. Se não
houver vontade política não há reforma da administração pública. No entanto,
para se verificar uma reforma séria tem de haver a definição de uma visão, ou
seja, que Estado é que se pretende, que administração pública é que se pretende
e que compromisso partilhado é que se pretende tendo em conta a visão de longo
prazo. Não se pode fazer uma reforma por impulso e desfasada da realidade do
País.
A reforma
da administração pública é uma realidade transversal a todo o Estado e implica
necessariamente uma articulação com a própria reforma do Estado e revisão das
funções associadas. É um processo contínuo e não se esgota precisamente porque
importa dar resposta às questões de ordem política e orçamental. Por exemplo,
não pode haver redução de efetivos sem ter em conta as funções do Estado e,
também, sem ter em conta a dimensão dos ministérios e de secretarias de estado.
Por último,
é importante rever o papel dos dirigentes. A excelência de uma administração
depende dos seus dirigentes e da forma como eles são recrutados. É importante
esclarecer, no debate que se pretende levar no âmbito da reforma da
administração pública, se a escolha dos dirigentes deverá ser por critérios
políticos e partidários ou por critérios de competência.
Maio de
2015
Luís
Barbosa Vicente
(*) Consta do livro «Guiné‑Bissau, das contradições politicas aos desafios do futuro» de Luís Barbosa Vicente, Editado pela Chiado Editora (2016).
[1] Sobre os sistemas
constitucionais, sugiro a leitura atenta do NETO, António
A. (2003), Instituições políticas e sistemas constitucionais nos países
africanos de expressão portuguesa, Luanda, Livraria Kiazele, Editora.
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