Olhares sobre a Guiné-Bissau depois das eleições de 2014, até hoje (*)
Por Mário
Beja Santos
Não se pode ficar insensível à natureza das análises que Luís Barbosa Vicente faz ao seu país, é corajoso ao pôr em cima da mesa os custos
da política sem regras, as intrigas institucionais, a falta de solidariedade
entre os órgãos de soberania e o tremendo impasse político em que vive a Guiné-Bissau. Aponta
remédios, socorre-se da sua profissão de gestor de projetos e de formador e
consultor para sugerir uma reforma da Administração Pública que dê segurança e
competência aos quadros e administrativos, dignidade para que a Função Pública e a vida das autarquias
ganhe vivacidade; por outro lado aponta novos caminhos para a participação
pública. Observações rigorosas, contundentes, de um guineense que vive em Rio
Maior, sem descurar a sua pátria.
A obra intitula-se “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa
Vicente, Chiado Editora, 2016. O autor é guineense e desenvolve ampla atividade
como gestor de projetos e desenvolvimento e, igualmente, como formador e
consultor da União Europeia.
No texto anterior, deu-se conta da sua análise sobre as
profundas contradições existentes ao nível das instituições de soberania
guineenses, e como é que elas têm sido marcantes depois das eleições de 2014,
até à atualidade.
Luís Vicente entende que todos estes desencontros permanentes
em que a Guiné-Bissau incorre também derivam do abandono do legado político do
PAIGC, e que foi a alavanca da luta pela independência. E explana o tema da
unidade, as propostas programáticas de Cabral, a dinâmica da organização
política e a vontade de mobilização interna para progredir para o
desenvolvimento e para novas patamares da civilização e da cultura dos homens
livres, pós-colonialismo.
O autor atribui uma enorme importância a um desligamento
entre a entidade política que é o PAIGC com os grupos constituintes da sociedade
civil, é como se a entidade política vivesse num circuito fechado, em que cada
um militante aspira a uma fatia maior para a consumação dos seus interesses.
E assim se retoma a questão da unidade. Quando o autor
regressou à Guiné depois das eleições de 2014, sentiu que os seus
interlocutores tinham uma preocupação comum: unidade, coesão e urgência no
estabelecimento das prioridades para o arranque do país, bem como com a
reorganização do aparelho de Estado. Seguidamente, analisa os constrangimentos
e desafios que se põem à Administração Pública e lembra que todo o enviesamento
procede do período subsequente à independência da Guiné-Bissau.
Um membro do PAIGC, logo a seguir a Outubro de 1974, deu
conta da relativa indiferença por parte dos membros do governo quanto à
necessidade de estabelecer procedimentos administrativos para uso da máquina do
Estado. Naquele primeiro governo de Luís Cabral nada estava escrito sobre a sua
estrutura e muito menos quanto aos titulares dos seus diferentes órgãos.
Sabia-se apenas quem estava em determinado cargo, o resto era mistério.
Extrapolando para os dias de hoje, observa o autor: “A maior parte
dos serviços funcionam por autorrecriação dos seus dirigentes, funcionários e
técnicos, sem quaisquer normas de procedimentos administrativas e de controlo
previamente definidos, daí existirem falhas de comunicação entre as
administração do mesmo serviço público e serviços diferentes incluindo a
relação entre o cidadão, o Estado e a Administração Pública”. Em cada governo,
quem chega altera a sua maneira a estrutura do cargo que vai desempenhar, seja
assessor-conselheiro, diretor de gabinete. Vive-se a instabilidade crónica.
Todas as críticas dos cidadãos ao funcionamento da
Administração acabam por ter fundamento: a justiça continuar a funcionar mal,
não garante ao indivíduo o seu papel de defensor da causa pública; existem
funcionários públicos a mais e sem qualificação, isto num estado que consome
mais de metade da riqueza nacional com os encargos com a Administração Pública.
E finaliza o autor: “Não existe um diploma que regule de forma
global, sistemática e coerente, o modo de proceder da Administração Pública
perante os particulares, o que se traduz na vigência de ambiguidades que
prejudicam os particulares e põem em causa um bom e regular funcionamento da
Administração”. Ele defende um plano de modernização administrativa e
governação eletrónica da Guiné-Bissau e explana abundantemente sobre o modelo,
dando como exemplo o que fez no quadro da cooperação entre o município do Rio
Maior e a Câmara Municipal de Bissau – é nos termos de uma experiência uma
matéria digna da maior intenção dos quadros políticos guineenses.
Por fim, o autor faz propostas para o novo paradigma do
desenvolvimento assente nos pilares da ética, da responsabilização dos agentes
públicos, na valorização da diplomacia económica e numa nova dinâmica da
cooperação, detalhando as potencialidades do setor mineiro na Guiné-Bissau.
Olha-se para este ensaio como uma indesmentível prova de boa
vontade de um guineense que pretende ver a Guiné-Bissau trilhar caminhos mais
largos na boa governação, no exercício da cidadania, na ética política e na
valorização dos mercados, em nome de uma riqueza melhor distribuída.
(*) 26 DE
DEZEMBRO DE 2016
Mário Beja
Santos
Ler aqui: https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2016/12/guine-6374-p16883-notas-de-leitura-914.html
Livro disponível na FNAC, Wook, Bertrand, Almedina, Livraria
Garrett, Porto Editora, S.A., Llibreria Altair S.L., Oficina
do livro, Leitura - Books & Living
(*) Mário Beja Santos foi, até outubro de 2012, técnico superior da Direção-Geral do Consumidor. É autor de mais de três dezenas de títulos relacionados com as temáticas da política dos consumidores. Continua a colaborar ativamente na imprensa diária e regional, bem como em alguns blogues. Foi professor do ensino superior; cofundador da Plataforma Saúde em Diálogo e da UGC – União Geral de Consumidores; colaborou durante mais de duas décadas em emissões radiofónicas ligadas à defesa do consumidor e foi autor e apresentador dos programas televisivos 10 Milhões de Consumidores e Come e Cala; na sua participação no consumerismo europeu, foi vice-presidente do Conselho Consultivo de Consumidores da Comissão Europeia e diretor da Associação Europeia de Consumidores. Alguns dos seus últimos livros são dedicados à Guiné: Diário da Guiné (1968-1969) – Na Terra dos Soncó, Diário da Guiné (1969-1970) – O Tigre Vadio, Mulher Grande e A Viagem do Tangomau foram publicados pelo Círculo de Leitores e pela Temas e Debates em 2008, 2011 e 2012.
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